Pois o reino de deus não consiste em palavras, mas em poder





(Publicado originalmente através da Casa1/Editora Monstra no livro "Álbum de memórias", 2022.)

Era verão, estávamos na praia e tínhamos acabado de almoçar. Toda minha família estava na beirada, conversando e nos observando. Eu estava apenas de sunga, sem peitos, brincando com a minha irmã. O dia estava lindo, especificamente naquele lado do mar, onde à tarde se formava uma piscina ao lado do recife. Íntimo. Meu local favorito quando o mar deixava-o existir.

O sol batia nas áreas mais bonitas sem incomodar os olhos. A água estava perfeita e cristalina, quase que consegui ver o siri que por pouco não pisei. Minha avó sempre disse que eu era muito descuidada. Os cardumes faziam seus shows. Eles nadando entre nós e vice-versa. O castanho do recife estava em realce. Onde a água não tocava, se formava uma pequena caverna com suas protuberâncias cortantes. Eu tinha medo de me ralar toda por ali. Uma tarde de graça.

Eles eram lindos e divertidos, a energia descompromissada e fala brincalhona. Me envolvia. Tinham se aproximado de mim e da minha irmã. Os dois primos, um tinha minha idade e outro a da minha irmã. Estávamos nos observando, fazendo o primeiro contato para uma possível boa brincadeira. Não tínhamos muita sorte em fazer novas amizades, então sempre éramos nós e nossos próprios primos nas tardes. Animadas com a possibilidade dessa acontecer.

Minha irmã, eloquente, se deu o trabalho de fazer toda a sala. Eu sempre quieta diante de estranhos, resguardada. Mesmo que eu quisesse, quanto maior nossa interação, mais eu me sentia incomodada. Começaram a chamar minha atenção, me agregar valor e nomes, anunciavam nossa diferença e o meu não pertencimento ao mundo dos primos. Intrusa e sem nenhum mundo sob meu domínio, me fechei ainda mais e tentei fingir que apenas os peixes estavam ao meu redor. Ela, presente e de punhos fechados, expulsou os donos de mundo. Fechou a boca dos leões. Aliás, o mundo também a pertence, mesmo que reivindicações tenham sempre que serem feitas.

Após a retomada do poder, a tarde já não era a mesma. As minhas questões estavam expostas, mais uma vez, e eu não obtive sucesso em cobri-las novamente. Os adultos logo perceberam. Meu pai, também dono de mundo, leão de boca grande e caída, não entendia minha renúncia ao meu domínio herdado por falo e semelhança ao meu genitor. Me cobrava posse do que era meu. Meu pisar no mundo. Já não estava no mar, agora não havia peixes ao meu redor. Fiz promessas de clamar. Perto daquele lugar ainda consegui habitar sem escritura, por pouco tempo. Logo logo todo o mundo teria donos e eu não teria mais onde nadar.