(Lançado originalmente na primeira edição da revista Víbora, meu primeiro texto publicado, em 2021.)

Rua tenente alguma coisa, do bairro não sei qual, era o meu mundo. Me contaram sobre “joão pessoa”, sobre “bagdad” e muitos outros mundos, mas a falta de fé sobre aquilo que nunca foi visto ou vivido era grande. Eu nunca havia saído daquela rua, acreditava ser aquele trecho o único pedaço de chão que meus pés iriam caminhar. Apesar da memória curta, devido a uma mente muito jovem, lembro das pessoas rirem de mim quando eu afirmava ser aquela, o que para mim ela era. Após rirem, me levavam para o fim da rua e diziam “Tá vendo? Há muitas outras ruas!”. Lentamente fui me habituando à ideia de que meu mundo era de fato minúsculo e que meus pés teriam outras terras para caminhar. Eu estava sentada sobre uma mesa redonda branca quando me contaram que iríamos nos mudar e que agora eu teria como comprovar, de fato, que existiam outras ruas. Ansiosa, arrumei o que havia para arrumar e em carros e carroças emprestadas, nos mudamos. A nova rua era menor e dela eu conseguia ver muitas outras ruas. Logo fiz amizades, logo a ideia de rua mundo foi se esvaindo.

Conheci alguns vizinhos, uns irmãos: um menino, um ano mais velho que eu, e duas meninas, muito mais velhas que eu. Nós nos encontrávamos na rua sempre que eu chegava da escola. Minha avó não gostava que eu passasse muito tempo na rua ou entrasse nas casas dos vizinhos para brincar, e muito menos levasse outras crianças para casa, mas eu dava meus pulos. A amizade com uma das irmãs era mais fácil, com outra era difícil e com o menino era sutil. Ele e eu conversáramos sobre animes, ele amava assistir, eu amava conversar com ele sobre o que quer que fosse.

Um dia, depois que cheguei da escola, ele veio para minha casa e disse querer desenhar, que queria desenhar tão bem quanto os animes. Eu devo ter pedido que me desenhasse. Queria instigar ele, fazer com que melhorasse no desenho, incentivar. Fomos para a sala, quase anoitecendo, minha mãe estava por perto, mas não muito perto. Escolhi uma posição nada masculina para meu imaginário da época. No chão, deitada sobre um tapete, de lado com meu braço segurando minha cabeça. Ainda vestida com a farda da escola, marrom e branca. Naquela posição, daquele jeito, ele me fez.

Eu estava tão animada, tão ansiosa. Pensava que algo incrivelmente belo sairia dali, que aquele desenho revelaria a minha melhor ser. Lembro que foi bastante íntimo, estava envergonhada por ele estar me observando. Ele olhava, olhava, rabiscava e rabiscava. Queria parecer bonita, fazia o possível para que nenhum fio de cabelo se mexesse enquanto ele não terminasse o desenho. Aqueles olhares, essa intimidade, a pose que eu escolhi, tudo sobre aquilo me pareceu errado e pensei “meu pai não pode saber disso”. Parecia que nunca ia acabar, queria ver logo o resultado. Avia, avia. Longos minutos depois, ele me mostra a caderneta em que me desenhou com lápis grafite e eu tento manter um sorriso animado no rosto. Não queria decepcionar ele. Olhava e olhava, mas nada sobre aquilo me agradava. Eu odiei aquele desenho, quis logo rasgar, falei que estava lindo e disse muito obrigado.

Mostrei o desenho para minha mãe, que também estava curiosa para ver o resultado. Ela amou e disse que ele era um grande desenhista, que deveria continuar. Realmente, ele era muito bom. Ele me desenhou fielmente, era assustador. Era eu naquele desenho, braço, cabelo, cabeça, ombro, pescoço, pose e tudo mais. Isso me decepcionou muito. Não era muito bem o que eu esperava, mas o pensamento de ser daquela forma, até mesmo através dos olhos das pessoas que eu gostava, me fez sentir horrível. Assim que ele saiu, eu fui para o meu quarto, rasguei aquele desenho em pedacinhos e passei uns dias sem pisar sobre a minha nova rua mundo.
me desenhou